O Natal de todas as memórias

Quem não se recorda dos primeiros natais em família, da árvore de natal, do presépio, do calendário de natal de chocolates, da abertura dos primeiros presentes, da missa do galo, do bacalhau, do peru ou do cabrito, da família, sobretudo dos avós. Sempre os avós. 

Sendo o Natal uma época de muitas das nossas memórias, reservemos, pois, um tempo para falar de memória, dos que a perdem e dos que assistem a essa perda. Do que fazemos por essas pessoas, do que devíamos fazer e do que poderemos vir a fazer. 

A memória é de enorme importância. Diria que se confunde com o que é a identidade. A possibilidade de cada indivíduo se reconhecer a si, à sua biografia e às suas referências num determinando momento, determina a pessoa que se é nesse mesmo instante. É, portanto, um exercício de enorme dureza assistir ao desaprender gradual daqueles que mais gostamos, à sua regressão física e psicológica. 

Infelizmente, os últimos natais para os doentes com demência, e em particular para aqueles com demência de alzheimer (a causa mais comum de demência, responsável por 60% a 80% de todos os casos de demência), têm sido particularmente negros. Cada nova luz que aparece no horizonte da investigação clínica se apaga com violência, e cada promessa dos decisores políticos de criar condições, instrumentos e estruturas adaptadas a estes doentes e seus cuidadores se transforma numa mão cheia de nada – a insuficiência da rede nacional de cuidados continuados ou o atraso que existiu na aprovação do estatuto do cuidador informal que se encontra ainda em fase de regulamentação.  

Atualmente, do ponto de vista médico, temos dois tipos diferentes de medicamentos para oferecer aos doentes com demência por doença de alzheimer, conforme o estadio da sua demência, e que infelizmente não modificam a progressão da demência. Dito de uma forma simples, estes medicamentos “ajudam a perder as capacidades cognitivas um pouco mais devagar”. Mas os medicamentos são só metade do tratamento, infelizmente a outra metade é inacessível à maioria dos portugueses. Falo da estimulação cognitiva que pode ser feita nas formas incipientes de deterioração cognitiva (quando o indivíduo é ainda perfeitamente autónomo para o seu dia-a-dia) e na demência (quando essa deterioração se traduz em perda de independência do indivíduo).  

A estimulação cognitiva pode atrasar a conversão em demência e, nos doentes com demência – quando associada aos medicamentos que falei acima – parece ainda atrasar um pouco mais a sua progressão, melhorando também o bem-estar dos doentes e dando algum tempo de descanso aos seus cuidadores. No entanto, esta intervenção não é disponibilizada aos doentes portugueses, essencialmente por incapacidade política e organizacional, uma vez que não é sequer uma estratégia particularmente dispendiosa.  

Utilizando como exemplo Barcelona, uma realidade que atualmente conheço, o Governo Regional da Catalunha e a Câmara Municipal de Barcelona, entendendo a dimensão que representavam as perturbações cognitivas na sua população, decidiram, já há alguns anos, desenvolver políticas especialmente orientadas para esta franja da população. Entre várias medidas implementadas, avançou-se para a adaptação das estruturas cívicas existentes de forma a que pudessem fornecer à população intervenções de estimulação cognitiva.  

Assim, em cada freguesia da cidade de Barcelona existe pelo menos um centro cívico, ou equivalente, onde são desenvolvidas oficinas de memória com periodicidades semanais variáveis (em geral duas ou mais sessões de uma a duas horas por semana), e ainda centros de dia públicos ou privados, estes últimos com algumas vagas convencionadas, com programas de estimulação cognitiva em regime de ambulatório (ex: das 09.00 às 19.00). Estes programas são, em geral, desenvolvidos por psicólogos, mas a sua aplicação, após período de formação, pode ser levada a cabo por profissionais sem especial diferenciação, funcionado esta intervenção maioritariamente em modelo de grupo.  

Estamos a falar assim de um modelo que não é particularmente caro (apresenta inclusive uma relação custo-benefício positiva), aproveita as estruturas comunitárias existentes, e que não exige um especial aumento no pessoal qualificado.  

Enquanto esperamos que neste Natal nos venha no sapatinho algo que se assemelhe a esta intervenção no nosso país, não podemos deixar de olhar com renovada esperança e otimismo para a estrela da árvore de natal, quando parecem existir notícias promissoras de alguns avançosum pouco mais seguros da investigação nestas doenças tão difíceis. 

Em nome da Associação Mental8Works, desejo a todos um Feliz Natal, cheio de boas memórias! 

Pedro Câmara Pestana – Psiquiatra Mental8Works

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